A Desumanização, Valter Hugo Mãe | Opinião Livros

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Capa do livro A Desumanização (7ª Edição)

Sinopse:
Passado nos recônditos fiordes islandeses, este romance é a voz de uma menina diferente que nos conta o que sobra depois de perder a irmã gémea. Um livro de profunda delicadeza em que a disciplina da tristeza não impede uma certa redenção e o permanente assombro da beleza.

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Opinião:

À já algum tempo que pretendia ler uma obra de Valter Hugo Mãe, um escritor português com bastante sucesso, tanto dentro como fora de portas, e que já ganhou vários prémios. Contudo, apesar de ter gostado deste livro, A Desumanização pode não ter sido a escolha ideal para a primeira leitura de Valter Hugo Mãe. Porquê? Isto porque apesar da escrita lindíssima, quase poética, este livro segue exclusivamente num tom marcadamente melancólico. Trata-se de uma história forte de dor e sofrimento e que, tal como o nome indica, fala sobre a desumanização do mundo para a protagonista da obra, Halldora, uma criança que é forçada a crescer sem ter ainda maturidade para tal e que é completamente consumida pela perda da sua irmã gémea.

Eramos gémeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu pela metade com a morte.

A vida de Halldora sofre um grande revés com a morte da sua irmã gémea, a partir daí a curta vida de Halldora, já fortemente marcada pela perda da irmã, irá se tornar cada vez mais negra, mais marcada pela melancolia e pela perda. Mas desenganem-se aqueles que julgam que este será o único revés na vida da protagonista, uma criança muito solitária, cujo pai, um homem que adora ler e que inclusive escreve poesia, é o único apoio. A sua mãe, uma mulher de algum modo desequilibrada psicologicamente, não sei se com a morte da filha ou se os seus distúrbios já vinham de antes, despreza a filha "menos morta" e chega a impingir-lhe vários tipos de maus tratos, tanto físicos, como psicológicos.


A poesia é a linguagem segundo a qual deus escreveu o mundo. Disse o meu pai. Nós não somos mais do que a carne do poema. Terrível ou belo, o poema pensa em nós como palavras ensanguentadas. Somos palavras muito específicas, com a terna capacidade da tragédia. A tragédia, para o poema, é apenas uma possibilidade. Como um humor momentâneo.

A Desumanização fala principalmente sobre tristeza e luto, sobre as dificuldades da protagonista em aceitar a morte da irmã, nas suas tentativas de preencher o vazio deixado por Sigriurd e da sua vontade de fugir, que era a vontade da irmã, de deixar aqueles recônditos fiordes gelados para trás e da sua enorme lucidez em ver as coisas que se passam à sua volta, mas nunca conseguir fazer realmente parte daquele local.

Como açoriana consigo compreender perfeitamente a insularidade em que vive o povo islandês, aquela sensação de estarmos presos na terra na qual não escolhemos nascer, mas da qual para sempre faremos parte e que para sempre estará no nosso coração independentemente do sítio para onde iremos. A nossa ilha estará sempre connosco, sendo ao mesmo tempo fonte de conforto e aconchego materno e também uma prisão e nos limita e nos corta as assas. Em criança nunca conheci essa sensação quase palpável e condicionante, porque na infância nós estamos centrados apenas em nós próprios. Halldora sente tudo isso, é uma criança especial, talvez bem à frente da terra na qual nasceu.

A relação de Halldora com a mãe é no mínimo reprovável. Uma mãe deveria ser o conforto e aconchego da sua filha, mas, pelo contrário, a mãe de Halldora é a principal fonte de angústia da filha que vive constantemente com medo e em silêncio por causa das atitudes loucas da mãe. A mãe de Halldora devia ser internada num hospício em vez de a deixarem a "tomar conta" de uma criança de nove anos.

O tempo vai passando e Halldora vai experienciando de modo muito pouco convencional e até reprovável o "amor", o sexo, mas vai viver novamente a dor da perda e com todos esses ensinamentos ela vai seguir rumo ao futuro, seja ele qual for.

No início odiei a história d'A Desumanização, mas quando acabei a leitura do livro passei a amá-la, porque apesar de tudo, Halldora, a "menos morta", é uma personagem fascinante, de uma complexidade notável, capaz de bondade, mas também de malvadez, uma jovem extremamente analítica e visionária, no fundo ela é completamente humana, porque no fundo é impossível isso da desumanização.


Mais tarde, também eu arrancarei o coração do peito para o secar como um trapo e usar limpando apenas as coisas mais estúpidas.

Sobre o autor:

Valter Hugo Mãe é um dos mais destacados autores portugueses da atualidade. A sua obra está traduzida em variadíssimas línguas, merecendo um prestigiado acolhimento em países como o Brasil, a Alemanha, a Espanha, a França ou a Croácia. Publicou sete romances: Homens imprudentemente poéticos; A desumanização; O filho de mil homens; a máquina de fazer espanhóis (Grande Prémio Portugal Telecom Melhor Livro do Ano e Prémio Portugal Telecom Melhor Romance do Ano); o apocalipse dos trabalhadores; o remorso de baltazar serapião (Prémio Literário José Saramago) e o nosso reino.

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