Jerusalém, Gonçalo M Tavares | Opinião Livros

livro-Jerusalém-de-Gonçalo-M-Tavares
Capa da última edição do livro.


Um dia a mãe de Mylia, de 18 anos, leva-a ao médico, Theodor Busbeck, alegando que a filha vê almas. O médico apaixona-se por Mylia, talvez como objecto de estudo, contudo, passado algum tempo, e dada a impossibilidade de vida em comum, Mylia é internada no hospício Georg Rosenberg. Busbeck dedica-se a estudar o sofrimento, convencido de que se chegar a descobrir o padrão do horror através dos tempos resolverá os problemas da sociedade global. Mylia , no Hospício, apaixona-se por Ernst, esquizofrénico, de quem tem um filho. Uma mulher, um assassino, um médico, um menino, uma prostituta e um louco. E uma noite. Jerusalém foi o romance mais escolhido pelos críticos do jornal Público como “livro da década.”






Um livro cuja ação central se passa numa única e fatídica noite. De frases curtas, parágrafos pequenos e capítulos rápidos. Um livro de loucos, sobre loucos e para loucos...

Aviso desde já que para lermos este livro temos que ter em atenção a linguagem direta e crua do autor, porque desde o começo que percebemos que a escrita de Gonçalo M Tavares é de certo modo desconfortável, pouco dada a eufemismos. Trata-se duma linguagem que pretende nos impactar, nos fazer sair da nossa zona de conforto e encarar a vida em toda a sua crueldade e ao mesmo tempo ver a beleza de estar vivo e podermos ainda traçar o nosso destino, porque enquanto há vida há esperança.

Costumo dizer que é a fé que nos move, não o digo no sentido de não fazermos nada e esperarmos que as coisas nos caiam no colo, mas no sentido de continuarmos a lutar contra a maré por termos fé, porque se não a tivéssemos para quê lutar afinal? Gonçalo M Tavares não me traz fé, mas contra aquilo que seria de supor, faz-me ter vontade de viver com todas as minhas forças, como acontece aos seus protagonistas desesperados e pouco honrados, mas que mesmo assim não desistem como Mylia com a morte praticamente anunciada e que mesmo assim apega-se à pouca vida que lhe resta com uma vontade férrea, como Kaas um menino deficiente que só quer ser aceite pelos outros como um deles, até Hinebeck, um antigo soldado que parece não ter recuperado da guerra e ter desenvolvido uma estranha obsessão em se alimentar de carne humana, busca a normalidade que a guerra lhe roubou.

As personagens pouco convencionais do autor são improvavelmente reais, todas elas têm algo que as diferencia, que nos repele e, ao mesmo tempo, as aproxima de todos nós. Porque neste mundo de contrastes são as nossas imperfeições, ou apenas diferenças, que nos fazem realçar entre a multidão. Acontece com todos nós, uns em maior escala do que outros, mas todos nós indubitavelmente temos que aprender a lidar com as nossas diferenças e torna-lás na nossa maior vantagem.

Gonçalo M Tavares abre a história com Mylia, mas é enorme o número de personagens que acaba por percorrer as páginas deste pequeno grande livro, um romance incomum, Jerusalém causa primeiro estranheza e depois um certo fascínio, mas sempre um grande desconforto, derivado do facto de não conseguirmos criar a devida empatia com as personagens e das cenas cruéis que vão acontecendo sem qualquer exibição de sentimentalismo por parte quer das personagens, quer do narrador, tudo isto aliado à escrita do autor. Outro ponto que Gonçalo M Tavares passa subtilmente ao longo de todo o livro é crítica social, nomeadamente, a injustiça, sem direito a reposição, a que as personagens mais fracas estão sujeitas aos longo de todo o livro. Sem dúvida uma obra de qualidade  com várias camadas e que merece os todos prémios que recebeu.

O melhor: O desenvolver e entrelaçar de várias personagens de forma magistral.

O menos bom: Esta obra apresenta um tom demasiado forte, com uma crueza por vezes desumana.


Gonçalo M Tavares
Gonçalo M. Tavares nasceu em 1970. Desde 2001 publicou livros em diferentes géneros literários e está a ser traduzido em mais de 50 países.
Os seus livros receberam vários prémios em Portugal e no estrangeiro. Com Aprender a rezar na Era da Técnica recebeu o Prix du Meuilleur Livre Étranger 2010 (França), prémio atribuído antes a Robert Musil, Orhan Pamuk, John Updike, Philip Roth, Gabriel García Márquez, Salman Rushdie, Elias Canetti, entre outros.
Alguns outros prémios internacionais: Prémio Portugal Telecom 2007 e 2011 (Brasil), Prémio Internazionale Trieste 2008 (Itália), Prémio Belgrado 2009 (Sérvia), Grand Prix Littéraire du Web – Culture 2010 (França), Prix Littéraire Européen 2011 (França). Foi também por diferentes vezes finalista do Prix Médicis e Prix Femina. Uma Viagem à Índia recebeu, entre outros, o Grande Prémio de Romance e Novela APE 2011. Os seus livros deram origem, em diferentes países, a peças de teatro, dança, peças radiofónicas, curtas-metragens e objetos de artes plásticas, dança, vídeos de arte, ópera, performances, projetos de arquitetura, teses académicas, etc.

Comentários